Plantas que tingem: Urucum – Capítulo 1

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Todo brasileiro conhece o urucum, mesmo não sabendo exatamente o que é. Quem nunca brincou de índio pintando o rosto de vermelho? Quem nunca experimentou um dos muitos pratos bem brasileiros temperados com colorau? Pois é: duas coisas que vem do urucum, mesmo que a primeira tenha virado apenas uma referência.

O urucum é uma planta muito comum em praticamente todo o Brasil. Por ser tão comum, muitas vezes não enxergamos de pronto sua relevância. Suas sementes guardam e revelam a força do vermelho. É uma planta que tem muitos valores: histórico, econômico, medicinal e simbólico. Os povos indígenas sempre souberam de sua importância. A intenção deste texto é redescobrir sua força ancestral além, é claro, de revelar suas cores nos tecidos através do tingimento natural.

Muito antes da invenção do Brasil

Urucuzeiro em rua do bairro de Vila Mariana em São Paulo – SP, foto de Gil Gosch.

Descobrimento do Brasil, pintura de Cândido Portinari, 1956.

“Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.”

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, uma infinidade de povos indígenas originários dessas terras já usavam o urucum provavelmente há milhares de anos. A citação acima é um trecho da reveladora Carta do Achamento do Brasil. Escrita pelo cronista Pero Vaz de Caminha, ela narra de forma poética a passagem da expedição de Pedro Alvarez Cabral por Porto Seguro – BA em 1500. Essa obra prima inaugura utopicamente o país e segundo Eduardo Bueno ela revela “tudo aquilo que o Brasil prometeu e nós não conseguimos cumprir”. A descrição muito precisa do urucum, usado como tintura pelos índios tupinambás, já está lá, fundindo-se com a inauguração de nossa história como colônia portuguesa.

O urucum, nome oriundo da palavra tupi-guarani uru´ku que significa vermelho, não é uma planta nativa somente do Brasil. Ela é encontrada em toda América tropical desde o México até uma parte do sul do Brasil e Paraguai. Seu nome científico é Bixa Orellana. Bixa vem da palavra bija, que é um dos nomes do urucum em espanhol, e Orellana supostamente vem de Francisco Orellana, o primeiro explorador espanhol que navegou o rio Amazonas em 1540.

Flore médicale des Antilles, ou Traité des plantes usuelles: des colonies Françaises, Anglaises, Espagnoles et Portugaises, de Descourtilz, M. E.,1821.

Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, Jean-Baptiste Debret, 1835, Coleção Brasiliana Iconográfica. Legenda da gravura: 1 Sementes usadas para colares. 2 Plantas para tatuagem. 3 Plantas nutricionais.

A descoberta mais surpreendente sobre a importância do urucum no tempo das colônias da América tropical, eu li no texto“Bixa orellana: ‘The Eternal Shrub’” de R. A. Donkin. E para não perder o impacto, abaixo transcrevo o trecho em tradução livre do inglês:


“Entre os espanhóis da América, Bixa tinha pouca reputação como corante têxtil, sendo fugitivo a luz e geralmente inferior à cochonilha (Graña). Mas pelo menos a partir do início do século XVII, as sementes da B. Orellana, ou o pigmento preparado, foram exportados para este fim. Robert Harcourt, 1613, observou que na Guiana ‘havia muitas mercadorias raras e singulares para os tintureiros, dentre elas há uma baga vermelha chamada Annoto [outro nome do urucum em espanhol], que é devidamente preparada pelos índios, e tinge um um laranja perfeito e certo na seda; foi vendido na Holanda por doze xelins estornando a libra, e ainda é de bom preço’. Vázquez de Espinosa, ca. 1628, informou que ‘muito [urucum] é exportado a partir destas províncias (Guatemala) e da Nova Espanha para a China, onde vende muito bem para tingir seda e para outros fins’. Mais uma vez, Cristóbal de Acuña, em seu relato sobre a região amazônica, 1641, refere-se ao ‘roucou [urucum em francês], que nossos tintureiros (provavelmente da Europa em geral) usam para fazer um fino escarlate’. No início da década de 1850, cerca de 230.000 lbs de urucum (no valor de US$ 36.000) eram enviados anualmente do Pará.”


Saber que o urucum já foi exportado como matéria-prima para tintureiros de vários países já no século 17, reforça minha premissa da importância tremenda desta planta para nós. Agora que já sabemos que o urucum é uma excelente planta tintória podemos avançar para o nosso mais ansiado tema: o tingimento natural.

As cores do urucum no tingimento natural

planta tintória urucum abrindo a cachopapara recolher as sementes

Tingir com urucum é sempre muito gostoso. Traz uma nostalgia da nossa ancestralidade indígena. Começando por abrir os “ouriços” para debulhar as bem guardadas e preciosas sementes vermelhas. O “ouriço”, na verdade chama cachopa, é bem mole e não machuca o dedo: parece brincadeira de criança. Se você não tiver uma árvore de urucum perto da sua casa, é fácil encontrar as sementes já debulhadas em lojas de ervas e chás.

Extração do corante do urucum

O processo de tingimento é basicamente o mesmo para qualquer planta: o material é fervido em água para obtermos a tintura. Se essa é sua primeira vez tingindo, no Tutorial – Tingimento com cascas de cebola, ensino o passo-a-passo para tingir um lenço de seda. Vale a pena conferir.

A diferença com o urucum é que, antes de deixar de molho as sementes em água para depois ferver, precisamos pilá-las para extrair muito bem a cor. Isto porque os corantes do urucum estão na película que envolvem a semente e precisamos soltá-la para libertar a cor. Vejamos:

Para pilar as sementes, misturo meia parte de álcool e meia parte de água suficientes para cobrir as sementes. Desta maneira a extração é mais efetiva. Não é necessário pilar com muita força: o intuito não é triturar as sementes, mas soltar o arilo que é a pele que as reveste.

Depois das sementes bem piladinhas, o processo é sempre o mesmo: deixá-las de molho em água, ferver, coar a tintura e mergulhar os tecidos para tingí-los.

Mas atenção! Os utensílios usados no tingimento nunca devem ser usados na cozinha. Nem mesmo os de urucum, apesar de ser comestível. E mais uma observação importante: todos os utensílios usados com o urucum, inclusive colheres, ficam impregnados de sua tinta. Isto porque possui uma substância meio oleosa que adere pintando tudo por aí, deixando a limpeza bem trabalhosa. Lembra da carta de Pero Vaz de Caminha? “E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam”… ossos do ofício.

“Um laranja perfeito e certo”

Este laranja brilhante é o resultado do tingimento com urucum na seda. Você deve estar se perguntando: se a semente é vermelha e a tinta feita pelos indígenas é vermelha, porque laranja? Foi exatamente o que me perguntei quando vi o resultado deste que foi um dos meus primeiros testes de tingimento natural.

A resposta é uma só: química! Vou tentar interpretar os dados que encontrei no site O Urucum de forma mais simplificada. Químicos e biólogos me corrijam, por favor. O corante principal encontrado na semente do urucum é a bixina. Dependendo das condições de aquecimento, luz e acidez do meio, o corante apresenta moléculas diferentes. Uma delas é a all-trans-bixina que tem a cor vermelha e é solúvel em óleo. Existe outra molécula chamada 9’-cis-bixina que é solúvel em água e apresenta cor alaranjada.

Bingo: por isso os índios usam óleo para fazer suas tintas vermelhas (vou explicar mais sobre isso no Capítulo 2). E nós, que precisamos da água para tingir nossos tecidos, conseguimos laranja!

Bom, já sabemos que o laranja está garantido. Porém, ele pode assumir muitas tonalidades diferentes como podemos ver nas fotos acima. Isto vai depender dos vários fatores que envolvem o tingimento natural. Nas fotos que se seguem, vamos perceber os 3 principais: o tipo de tecido, a quantidade de semente utilizada e o mordente usado. Para saber mais sobre estes importantes fatores do processo, leia a postagem Plantas que Tingem – Macela, onde explico com mais detalhes cada um deles.

Tipo de tecido e quantidade de semente utilizada

O tingimento com urucum altera muito a tonalidade da cor dependendo do tecido ou fibra que usamos. Olha quantos tons diferentes:

varias peças texteis indicadas com tingimento natural urucum

Na receita padrão para preparação da tintura de qualquer planta, utilizamos a proporção de 100% do peso do tecido, em planta seca ou fresca. Isto quer dizer que para tingirmos 50g de tecido, preparamos a tintura fervendo 50g da planta em água, no nosso caso as sementes do urucum. Porém, podemos usar qualquer quantidade de planta de que dispomos. Existem plantas, como o urucum, que tem o potencial tintório muito alto e mesmo usando uma concentração menor, conseguimos tingir perfeitamente tons muito bonitos. Veja as porcentagens do urucum que usei nas peças da foto acima.

Mordente

Como em qualquer processo de tingimento natural, o mordente também é determinante na cor final do tecido. Nas amostras da foto usei alúmen e ferro.

amostras de cores de tecidos tingidos com urucum de acordo com diferentes mordentes utilizados

Para saber mais sobre os mordentes – substâncias que fixam a tintura nas fibras do tecido – leia a postagem Plantas que Tingem – Macela.

Aproveitamento da tintura do urucum na impressão botânica

É muito raro eu jogar tintura fora. Não tenho coragem de me desfazer de tão precioso material que as plantas nos oferecem. Após uma sessão de tingimento, guardo a sobra, de preferência na geladeira, para reaproveitá-la outra vez. Geralmente aproveito esta tintura para a próxima produção com impressão botânica, outra técnica muito especial de tingimento natural. Só não podemos demorar muito para o reaproveitamento, porque como qualquer produto orgânico estraga bem rápido. Veja os resultados abaixo, onde reaproveitei a tintura do urucum.

Echarpes tingidas com o reaproveitamento da tintura do urucum através do processo de impressão botânica: 1. Flores do algodoeiro-da-praia; 2. Casuarina e folhas de café.

Também adoro usar as sementes do urucum diretamente no tecido quando faço a impressão botânica. O resultado, como você pode ver nas fotos abaixo, é sempre incrível.

Echarpes tingidas através do processo de impressão botânica:
1. Folhas de momiji, folhas de café e sementes de urucum; 2. Folhas de plátano, flores de macela e sementes de urucum.

Colorau ou urucum?

Você sabe o que vem antes: o colorau ou o urucum? Acertou quem falou urucum.

Urucum é essa planta poderosa de que falamos até agora. O colorau ou colorífico é o tempero usado para dar cor a muitos pratos de nossa culinária. Ele é feito a partir das sementes do urucum. Podemos encontrá-lo para vender na gôndola de qualquer supermercado, mas até hoje em muitos lugares do Brasil, ele é feito em casa, de forma bem tradicional, misturando fubá às sementes. Quem nos dá as dicas e a receita é a Neide Rigo no seu blog Come-se.

Na verdade, o principal uso do urucum no Brasil é como corante alimentício. Segundo a Neide, “quando for ler um rótulo de margarina, queijo, salsicha, sorvete e outros industrializados de cor amarela ou vermelha, procure pelo corante de código INS 160b. É ele. Tem sido usado em substituição a corantes sintéticos, já proibidos em muitos países, com a vantagem de ser natural e nutritivo.”

Com essa proibição dos corantes sintéticos na Europa, o Brasil se tornou nos últimos anos o maior produtor mundial e exportador de sementes e corantes de urucum. Segundo o IBGE, a produção referente a 2019 foi de 15.625 toneladas.

O mais interessante é este outro dado do IBGE: “Os custos envolvidos na colheita, ainda manual, torna o urucum uma cultura típica de pequenos produtores e da agricultura familiar, contribuindo para o aumento da renda desse tipo de agricultura e para a manutenção do homem no campo.” Taí outro papel importantíssimo do nosso já tão querido urucum.

Continua no próximo capítulo

O vermelho urucum roubou minha atenção completamente. Fiquei tão empolgada, pesquisando e escrevendo, que não percebi o texto crescendo. Para não ficar imenso, decidi separá-lo em dois.

Na próxima postagem vou falar sobre o universo indígena e o urucum. Tema que me fascinou pela sua força e pureza. Pelo seus simbolismos e sabedoria. Na verdade, vou apenas tentar esboçar uma percepção. Como falar com propriedade de um modo de viver que é exatamente o contrário do nosso mundo branco?

Por agora, fico torcendo para que este texto inspire muitas pessoas a sair por aí reconhecendo e tingindo com urucum.

E que possamos nos encontrar na próxima postagem muito bem!

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Créditos

Fotografias de Gil Gosch exceto a indicada na imagem.

Bibliografia

FERREIRA, Eber Lopes. Corantes Naturais da Flora Brasileira: Guia Prático de Tingimento com Plantas. Curitiba: Optagraf, 2008.

FLINT, India. Eco colour: botanical dyes for beautiful textiles. Fort Collins: Interweave, 2008. 238 p.

DONKIN, R.A. 1974. Bixa orellana: “The Eternal Shrub”. Anthropos, vol. 69: 33-56.

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