Cores do Japão – A poesia de Fukumi Shimura

“Por anos, desde que entrei no caminho do tingimento natural, eu venho recebendo infindáveis cores da natureza. Elas têm vertido infinitamente sobre mim, demasiado para este parco recipiente conseguir segurar. Exultante como uma criança com tintas novinhas, eu venho tecendo e tecendo os fios tingidos com árvores e gramas.” (Fukumi Shimura)

Não sei ao certo por onde começar este texto. Tarefa árdua achar palavras para exprimir tamanho encantamento! Melhor ir direto ao tema: a autora dessa linda frase acima, Fukumi Shimura.

Até os preparativos da viagem ao Japão – resultado do prêmio recebido pela obra têxtil Cada Passo – eu nunca tinha ouvido falar de Fukumi Shimura. Quem me apresentou foi Hisako Kawakami, minha sensei de tingimento natural. Seus olhos brilhavam quando me contou sobre seu encontro com Shimura sensei. Mas também não é por menos: Fukumi Shimura foi reconhecida como Tesouro Nacional Vivo, título concedido pelo governo japonês para pessoas que alcançaram a maestria como artistas e artesãos. Nascida em 1924 em Shiga, Japão, ela é mestra-tecelã e mestra-tintureira. Seus quimonos são obras de arte. Ela fia o fio de seda, tinge as meadas com plantas, tece à mão os fios em teares tradicionais, criando tecidos para seus quimonos que são pura poesia. Ao lado de sua filha, Yoko Shimura fundou a escola Ars Shimura, em 2013, com o firme propósito de, além de não deixar sua arte acabar, ensinar seu amor pela natureza.

Retrato de Fukumi Shimura e um dos quimonos feito por ela
Mestra-artesã: Fukumi Shimura vestindo um quimono feito por ela, em foto do Wikimedia Commons.
Benibana: quimono “Princesa dançante” 舞姫, feito por Fukumi Shimura em 2013, tingido com benibana (Carthamus tinctorius), índigo (Persicaria tinctoria), kariyasu (Miscanthus tinctorius) e kashiku (Quercus dentata). Foto reproduzida do site Shimuranoiro.com.

No outono de 2017, tive o grande privilégio de conhecer a escola Ars Shimura em Kyoto, no Japão. E neste exato momento sei que deveria ter começado o texto com essa simples palavra: muito obrigada! Muito obrigada a Shoji Shimura san, neto de Fukumi Shimura sensei, que me presenteou abrindo as portas de sua escola a uma estrangeira desconhecida. Muito obrigada a Hikari Sugiura san, Moeko Toyama san e a todas as alunas da escola que me receberam tão afetuosamente! Muito obrigada por tanta beleza e inspiração! Agora é a minha vez de ter um brilho novo nos olhos. Novamente sem palavras. Mesmo assim, tentarei descrever esse encontro tão especial, como forma de agradecimento.

Ars Shimura: uma escola onde se aprende a tingir com plantas, tecer com as próprias mãos e respeitar a natureza

Fernanda Mascarenhas em visita a ArsShimura sentada em frente a dois quimonos

Era uma manhã chuvosa de outono. Descemos, eu e meu marido, na estação de Saga-Arashiyama. Nada sabíamos sobre o lugar, mas sentimos ser um bairro muito especial. Das tranquilhas e estreitas ruas, enxergávamos montanhas ao fundo. No caminho nos deparamos com um majestoso templo budista que viemos a saber ser o Seiryo-ji. Meio enebriados, e achando que já estávamos perdidos, desembocamos em uma esquina. Espiando por debaixo do guarda-chuva, avistamos duas meninas na janela de uma casa acenando para nós como se fossemos velhos conhecidos. Era Hikari san e Moeko san. Essa calorosa recepção acalmou aquele frio na barriga das coisas importantes.

A escola fica numa casa que mais parece uma residência. Fomos recebidos em uma sala de tatame com dois quimonos expostos que me fizeram flutuar. Uma emoção indescritível eletrizou meu corpo: será que sou merecedora de tamanho privilégio? Hikari san, uma das pupilas de Fukumi Shimura sensei, com sua delicadeza e disponibilidade em conversar em inglês comigo, me contou sobre o processo artístico de Shimura sensei e sobre o funcionamento da escola. A escola recebe 15 alunos que aprendem a fazer seu próprio quimono de cabo a rabo. Durante 1 ou 2 anos, são ensinadas as técnicas de tingimento natural dos fio de seda com as cores específicas de cada planta e a técnica do aizome ou tingimento com índigo, o azul tão especial e tão japonês. As alunas aprendem a planejar o desenho e as cores dos futuros tecidos que formarão o quimono e os tecem, através do aprendizado da técnica de tecelagem chamada tsumugi-ori. E com muito orgulho, vestem seus quimonos na cerimônia de formatura do curso.

Graças à prestimosidade de Hikari san e Moeko san, pude sentir como seria se eu pudesse fazer meu próprio quimono. Elas prepararam demonstrações para mim e até pude colocar a mão na massa, ou melhor, na tintura. Puro prazer colorido.

Tingindo de amarelo com kariyasu

“Eu não peço para a noz ou semente de gardenia ou ameixa que cor eu quero – eu escuto a voz das plantas.” (Fukumi Shimura)

Moeko san, umas das professoras da escola, preparou uma linda surpresa para mim. Ela me conduziu ao espaço reservado ao tingimento dos fios: eu tingiria minha primeira meada de fios de seda com kariyasu! Fiquei tão curiosa e ansiosa como uma criança descobrindo um novo mundo. Pena eu não falar japonês… Kariyasu é uma planta que tinge de amarelo. Mais tarde descobri que é um tipo de gramínea, Miscanthus tinctorius, e é bem tradicional no tingimento japonês ou kusakizome. As imagens abaixo falam mais que as palavras:

Tingindo fios de seda de amarelo com Kariyazu na escola ArsShimura, em Kyoto, Japão

Foi uma felicidade. Logo que mergulhei a meada na tintura fervente de kariyasu, ela imediatamente absorveu o amarelo. Um amarelo claro, límpido e puro. Meada tingida, lavamos e penduramos para escorrer por algum tempo.

A meada estava tingida, mas a cor ainda não estava fixada. Hora da mágica do mordente. Usamos um mordente bem tradicional no Japão que é a água das cinzas da camélia, provavelmente parecido com a decoada, usada tradicionalmente aqui no Brasil. O espaço reservado ao tingimento é aberto para o jardim da casa e de lá podemos ver os arbustos de camélia que fornecem a base desse incrível mordente. Seu líquido é transparente como água, mas logo que as meadas tingidas são mergulhadas, ele fica amarelinho. E as meadas? Como num passe de mágica, elas adquirem um tom de amarelo forte, brilhante como o sol!

Mesmo nos dias atuais, com muito mais experiência em tingir, quando paro para concatenar as ideias e escrever, fico maravilhada. Realmente concordo com as palavras de Shimura sensei: as plantas nos presenteiam o tempo todo. Elas nos fornecem a cor e a substância que fixa a cor. E tudo sem pedir nada em troca.

Azul sagrado

Close dos fios de seda tingidos com azul profundo do índigo

“Trabalhar com índigo não tem limites e é infinito. Este trabalho vai existir enquanto os seres humanos estiverem aqui. É a cor da ascensão da vida.” (Fukumi Shimura)

O infinito azul do céu e do mar pode estar contido dentro de uma enorme tina de barro. Ou melhor duas. Foi o que senti quando testemunhei a demonstração de tingimento com índigo. Fomos conduzidos a uma sala especial, preparada para abrigar as duas tinas de barro cheias do misterioso líquido azul. Numa pequena prateleira, descansa um altar. Simples e claro, o altar está ali para venerar a Aizen Shin ou Deus do Índigo, uma deidade que protege o aizome, ou tingimento com índigo. Antes de mais nada, rezamos ao modo xintoísta, pedindo boa sorte no tingimento do azul. Agora sim a demonstração pode começar:

Depois de tingidas as meadas são abertas ao ar e enxaguadas abundantemente em água corrente. As tinas com índigo são mexidas todos os dias, cuidado necessário para deixá-las sempre vivas. O tingimento com índigo é um processo bem complexo que exige muito conhecimento e várias etapas de fermentação. Bem diferente do tingimento regular com as outras plantas que basicamente são fervidas. Na primeira postagem da série Cores do Japão – O azul de Hiroyuki Shindo, você poderá ter uma ideia da complexidade do processo. O universo do índigo é muito vasto e dará assunto para várias outras postagens. O importante agora é mergulhar neste azul profundo que também nos é presenteado por uma planta: a Persicaria tinctoria.

Close da meada de fios de seda tingidos com azul profundo do índigo

Tecendo os fios

Detalhe do urdume de tecido do quimono no tear - escola ArsShimura, Kyoto, Japão

“A vida de nossos têxteis depende das cores que são a generosidade da terra. As cores começam a contar histórias à medida que mergulhamos nelas, buscando as melhores combinações. Nosso desejo é tecer essas várias histórias em um sonho comum.” (Fukumi Shimura)

E assim seguimos para a outra etapa do processo: a tecelagem tsumugi-ori. No andar superior da escola, alinham-se comportados uns 15 teares. Daqui saem os tecidos que serão usados nos quimonos.

“Antigamente, a técnica de tecelagem chamada tsumugi-ori, aproveitava os casulos da seda rejeitados e com defeitos. Os tecidos resultantes, também chamados tsumugi-ori, eram usados pelos camponeses que produziam a seda e outras pessoas comuns. Na época, os tsumugi-ori eram caracterizados por tecidos comuns e de simplicidade de estilo. Atualmente, artistas têxteis como Fukumi Shumira, foram responsáveis pelo renascimento da técnica, elevando o tsumugi-ori a obra de arte, modernizando-o em termos de coloração e design.” (tradução livre do folheto do filme “Tsumugi-ori: the art of SHIMURA Fukumi”).

É aqui que a escola Ars Shimura não deixa a técnica do tsumugi-ori morrer, ensinado-a para as próximas gerações:

Poesia das cores

Detalhe de quimono azul e verde feito por Fukumi Shimura
Philosophy of Tsumugi : The World of Fukumi Shimura, Kyoto Prize, 2014

Ainda acho muito difícil encontrar palavras para definir o trabalho de Fukumi Shimura. Ela consegue combinar a maestria no fazer, modernidade, tradição, respeito, inspiração, poesia. Tudo o que é a alma da cultura japonesa. O filme acima – “Philosophy of Tsumugi: The World of Fukumi Shimura” – talvez mostre melhor em deslumbrantes imagens o que me foge em palavras.

Finalizo o texto com suas palavras:

“As plantas nos oferecem as cores esplêndidas que possuem em troca de nada. Essas cores são, na verdade, diferentes formas de luz: elas têm vida própria. Isso me fez perceber o quão maravilhosas e nobres são as plantas. Os humanos tiram proveito da natureza e arbitrariamente destroem nosso ambiente natural, cortando árvores, poluindo os oceanos e contaminando a natureza com o terrível poder da radiação nuclear. No entanto, as plantas continuam a nos oferecer uma gama infinita de cores. Isso me influenciou profundamente e foi o que me levou a perseguir minha vocação atual.” (Fukumi Shimura)

Gasshô Shimura sensei! 🙏🙏🙏

Cores do Japão

Folhas de momiji (Acer japonicum) no outono – Mosteiro Zen-budista de Eiheiji, Fukui, Japão

Esta é a segunda postagem da série Cores do Japão, um diário de viagem contando minha experiência ao visitar artistas japoneses que trabalham com as formas tradicionais de tingimento natural e tecelagem. Uma maneira de retribuir, agradecer e compartilhar tantas experiências belas que aprendi por lá.

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Até o próximo capítulo da viagem!

Conheça os produtos da loja online de inspiração japonesa, alguns tingidos com as folhas trazidas do Japão em harmonia com as plantas brasileiras:

Echarpe de seda Folhas de Momiji e Café

Noren Cortina Japonesa Shibori Urucum

 Quadro Botânico Momiji

 Lenço de seda Shibori Cinamomo

Créditos

Fotografias e revisão de Gil Gosch exceto as reproduções do livro e dos sites.

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