Você conhece a flor do cártamo? Eu nunca tinha ouvido falar. Fui conhecê-la no Japão com o nome de benibana e para minha surpresa ela é a protagonista de uma das mais tradicionais e raras formas de tingimento natural japonês.
Minha primeira experiência com o tingimento natural no Japão foi na província de Yamagata e coincide com a primeira vez que vi a cor da benibana. Posso dizer que foi no mínimo surpreendente, e nada planejado. Às vezes nem eu acredito, e toda a história parece mesmo um sonho. Vamos a ela.
Yamagata significa forma de montanha
Quando Yamagata entrou no roteiro da nossa viagem para o Japão eu não imaginava que ali seria meu primeiro contato com o tingimento natural japonês. Nosso destino era Amarume, vilarejo perto da cidade de Tsuruoka. Faríamos uma visita ao nosso mestre zen, Dosho Saikawa Roshi, no templo Gyokurinji, sua residência, para alguns dias de práticas zen budistas. E o inimaginável, aconteceu. Além de sermos recebidos de forma incrivelmente cuidadosa e afetuosa por ele e por Soen-san, sua delicada esposa, conhecemos Yamagata através dos olhos de ambos. Ouso dizer que não há privilégio maior.
Templo Gyokurinji em Amarume, Yamagata.
Jii-sugi, o “Cedro avô”, tem cerca de 1.400 anos e 10 metros de circunferência. Ele está localizado numa floresta de cedros próximo à Pagoda Gojû-tô na base do monte Haguro.
Yamagata significa forma de montanha (山 – yama: montanha; 形 – gata: forma) e foi o próprio Saikawa Roshi quem nos contou a respeito. É uma província na região de Tohoku, ao norte do Japão, com muitos campos de arroz cercados de montanhas de um lado e o mar do Japão de outro. A beleza das montanhas superou e muito meu olhar imaginário. Imaginação fundada pelos haikais de Bashô, no livro Trilha estreita ao confim que descreve sua viagem a esta região.
Por sugestão de Saikawa Roshi e Soen san fomos visitar uma loja de kusakizome na cidade de Yamagata, a uma hora de distância de Amarume, viajando de carro. Fiquei curiossíma: uma loja de tingimento natural? Literalmente kuzakizome significa tingimento (染 – zome) com plantas (草木 – kusaki). Nunca tinha ouvido falar sobre algo parecido no Brasil. O deslumbramento começou logo no caminho. Passamos pelo vale do rio Mogami para depois atravessar as majestosas montanhas. Foram nelas que vi pela primeira vez as cores do outono pintando as árvores. Inesquecível!
Paramos para tomar um café em um desses postos de estrada que tem uma lojinha de souvenir para turistas. Com o olhar curioso, ansiosos para não perder nenhum detalhe, eu e meu marido fomos espiar as lembranças. “Quem sabe não encontramos omiyages, (presentes em japonês) para as pessoas queridas do Brasil?” Para nosso espanto encontramos muito mais do que meros presentes. Encontramos muitas peças feitas com tecidos tingidos naturalmente. Eram lenços, carteiras, porta níqueis, tudo tingido com as cores das plantas japonesas. Fiquei maravilhada: se aqui podemos encontrar produtos feitos com tingimento natural, imagine no resto do Japão?
Foi ali também, embebida na mesma surpresa, que conheci a cor da benibana e descobri ser um tingimento tradicional da região de Yamagata. Comecei a perceber que essa prática é muito popular e valorizada como artesania no Japão, onde mestres artesãos mantém vivas suas técnicas assim como acontece na cerâmica, na tecelagem e em tantos outros fazeres japoneses. Continuemos viagem ao nosso destino final, a loja de kusakizome.
Uma loja chamada Kameya: do plantio ao tingimento natural
Chegamos a uma casa de madeira que me pareceu bem antiga, localizada em uma região quase rural, cercada de área verde. O teto da varanda, logo na entrada, estava forrado por plantas secas. Eram várias espécies de plantas tintórias, dentre elas a benibana. Se um dia eu sonhei com um atelier de tingimento natural, esse lugar se encaixaria perfeitamente nos meus sonhos. Fomos recebidos pela artista responsável pela loja. Infelizmente ela não falava inglês, uma pena eu não falar japonês. Lamentavelmente não tenho registro do nome dela.
No interior da casa, conhecemos a loja propriamente dita. Ali muitas cômodas e gaveteiros de madeira escura e pesada, guardavam delicadas peças tingidas com muitas cores de plantas. Ficavam guardadinhas ali, ao abrigo da luz, para não correr o risco de desbotar, um cuidado fundamental quando falamos em peças tingidas naturalmente. Cada gaveta revelava muitas cores lindas em lenços, echarpes e colares de seda. Não cansava de abrí-las para descobrir novas texturas e cores. Também tinham cortinas e painéis feitos em cânhamo. Era como se eu estivesse espiando o arco-íris do país maravilhoso das plantas.
Kameya não é uma simples loja. Ali eles semeiam as plantas tintórias, as colhem, preparam as tinturas, tingem e vendem essas peças especialíssimas, feitas em tecido ou em papel. São várias as plantas usadas para cada uma dessas cores incríveis exibidas ali. Quase não me aguentava de curiosidade para saber quais eram as plantas e se existiriam no Brasil.
Ao fundo da sala das gavetas, avistamos uma grande mesa de madeira onde a artista promove alguns workshops. Funcionando como uma cortina para amenizar a luz da grande janela que rasgava a parede, admiramos uma obra em papel da artista. Ao mesmo tempo delicada e contemporânea, a obra foi toda feita com washi (papel artesanal japonês), tingido artesanalmente com plantas.
A loja encheu meus olhos de alegria colorida e entusiasmo. Não tenho palavras para agradecer à generosidade de Saikawa Roshi e Soen san em nos levar àquele lugar tão especial. Acredito que o nosso mestre e sua esposa também ficaram encantados com a visita à Kameya.
E minha curiosidade para desvendar quais eram, além da benibana e do índigo, as plantas tintórias usadas no kusakizome? Pois é, tive que esperar. Só fui descobrir, mais tarde, na ocasião de minha visita ao Jardim Botânico de Plantas Tintórias da cidade de Takasaki.
Cor raríssima
“Nós [japoneses] fazemos tinturas naturais com benibana na província de Yamagata e elas são extremamente preciosas. São as únicas feitas apenas com as pétalas das flores. No entanto, essas tinturas são muito delicadas e podem sair facilmente ou descolorir.” (Fukumi Shimura)
A cor da tintura da benibana é esfuziante: um tom de rosa vivo que passa pelo salmão e vai até o carmesim, vermelho. Cores de princesas nipônicas que vestem muitas camadas de quimonos de seda e pintam as maçãs do rosto com o corante em pó que sai de suas pétalas. Como no depoimento e na obra de Fukumi Shimura: “Mais do que simplesmente gostar da cor da benibana, estou completamente encantada por ela. Em 2013, fiz um quimono chamado Maihime 舞姫 (Princesa dançante) por causa do meu amor sincero por esta tintura.”
Benizome: um processo de tingimento nada fácil
Depois de também me encantar com a cor da benibana, e ganhar um lindo colar tingido com ela, tentei descobrir um pouco mais sobre o tingimento com esta flor tão especial, chamado benizome. É um processo longo e complicado, um tanto misterioso, que leva tempo e paciência. Ele ainda é feito de maneira bem tradicional, quase nada mudou com o passar dos séculos. O pouco que entendi compartilho aqui com vocês.
Benibana, ou cártamo, em postuguês, é uma planta tintória como seu próprio nome científico indica, Carthamus tinctorius. É uma espécie semelhante ao açafrão e seu chá tem uso medicional conhecido para aliviar dores e tratar pressão alta e parasitoses. Apesar de suas flores exibirem uma cor amarelo-alaranjada, a preciosa tintura que se extrai dela é o vermelho-carmesim e o rosa. Para isso suas pétalas são deixadas de molho vários dias e lavadas várias vezes para tirar todo o corante amarelo que também está presente em sua composição.
Reproduções do livro “The japanese art ‘kusakizome’: Nippon colours”, de Akira Yamazaki.
Reprodução do livro “Nippon hand weaves in ‘kusakizome’ dyes”, de Akira Yamazaki.
Tonalidades conseguidas a partir do tingimento com benibana. Foto reproduzida do site The Benibana Museum.
Quem nos explica este processo de muitas etapas é Fukumi Shimura sensei:
“Naquele ano, eu tingi e teci com benibana como alguém sem controle… Nunca tinha usado uma tintura extraída unicamente de flores e pouco importava para mim se desbotasse à luz do sol. Na verdade, seu caráter fugaz me atraiu ainda mais… Para tingir com flores de benibana, primeiro você coloca de molho os bolinhos feitos de flores secas em água fria durante a noite, depois enxágua a tonalidade amarela em muitas águas. Em seguida, as flores são amassadas com água de cinzas e o vermelho é revelado através do ubai (ameixas verdes secas e defumadas)… Mergulhar uma meada branca e imaculada na tintura de benibana, repetidas vezes para aprofundar a cor, é como assistir a uma jovem despertar e florescer para a feminilidade. A beleza da cor da benibana tem pureza, assim como a cor do pau-brasil-da-índia tem mistério e a cor da ruiva-dos-tintureiros tem uma solidez robusta.” (texto extraído do catálogo da exposição The Substance of Colors, Spencer Museum of Art)
Para quem não está acostumado com o universo das plantas tintórias, em sua última frase Fukumi Shimura compara três plantas bem conhecidas por produzirem o corante vermelho: a benibana, o pau-brasil-da-índia (Cæsalpinia sappan) – árvore prima do nosso pau-brasil – e a ruiva-dos-tintureiros (Rubia tinctorium), conhecida também como madder.
Rosa: detalhe de quimono antigo de cânhamo tingido com benibana. Foto reproduzida do instagram da Galeria Sri @srithreads.
Vermelho: Quimono antigo japonês da era Edo tingido com benibana e estampado com a técnica do shibori. Foto reproduzida do site Trocadero.
O tingimento com benibana na Kameya
Na loja de tingimento natural Kameya, o processo do tingimento com benibana começa antes. A planta é semeada em março e colhida em julho. A colheita é bem trabalhosa já que suas folhas tem espinhos que machucam as mãos. Os três vídeos a seguir foram reproduzidos do site da Kameya.
As pétalas colhidas passam por um processo que dura dias de lavagens, trocas de água e descanso para tirar todo o corante amarelo que é o primeiro que sai. Segundo o site da Kameya, 99% de todo o corante da planta é amarelo. O vídeo abaixo mostra o terceiro dia do processo que a artista chama se “sono das flores” e ensina: “deixe-a repousar mexendo várias vezes ao dia para que tudo fique vermelho”.
Hora de fazer os bolinhos com as pétalas, agora vermelhas, e colocar para secar.
Só neste estágio o corante pode ser usado para colorir tecidos e papéis. Mas se engana quem acha que é só mergulhar os bolinhos vermelhos na água. Na hora do tingimento propriamente dito, o corante vermelho só aparece em um jogo de equilíbrio químico entre a água de cinzas, que é uma substância alcalina, e o ubai, que é bem ácido. Ubai é um tipo de ameixa (ume) seca e defumada feita especialmente para o tingimento com benibana, e usado tradicinalmente há séculos.
Ubai, tipo de ameixa (ume) seca e defumada usada no tingimento com benibana.
Tingindo papel washi com benibana.
Ambas fotos reproduzida do site Kameya.
A benibana, como muitos outros corantes naturais, já foi um negócio muito rentável no Japão antigo. Se você se interessa por história, acesse o site The Benibana Museum. Nele você vai encontrar muita informação sobre o tingimento com benibana, desde o cultivo da flor até o processo de tingimento em si.
Ao contrário do tingimento com índigo, descrito nos textos sobre minha visita a Hiroyuki Shindo e a escola Ars Shimura, não cheguei a testemunhar de perto este tingimento tão raro feito com benibana. Espero algum dia poder voltar ao Japão para testemunhar com meus próprios olhos este processo delicado e especial.
Cores do Japão
Esta postagem encerra a série Cores do Japão, um diário de viagem contando minha experiência ao visitar artistas japoneses que trabalham com as formas tradicionais de tingimento natural e tecelagem. Uma maneira de retribuir, agradecer e compartilhar tantas experiências belas que aprendi por lá. Aproveito para agradecer imensamente a todas as pessoas que nos receberam tão bem em todos os lugares pelos os quais passamos no Japão, e que fizeram desta viagem algo inesquecível.
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Créditos
Fotografias e revisão de Gil Gosch, exceto as reproduções dos sites indicados nas fotos.